top of page

O velho Dakota (# 190)

21.mai.2019
Dakota.png

Também dizem que o avião era tão equilibrado que parecia antecipar os erros do piloto, acabando o próprio avião por os corrigir.

Nunca tinha voado de avião. Foi em 1972, a propósito do casamento do meu irmão mais velho que se casou com uma rapariga de uma outra ilha, a ilha Terceira, sendo nós naturais de S. Miguel, nos Açores

 

Ao aeroporto, já tínhamos ido inúmeras vezes. Era sempre uma aventura ir ao aeroporto que ficava no meio de um pasto, ponteado de vacas e carneiros. Sim, porque os aviões aterravam na relva, aparadinha com a altura certa. Havia uma torre de controlo minúscula e um hangar gigantesco onde um ou outro avião poderia pernoitar.

 

Voei acompanhado da minha madrinha, uma tia afável, deliciosa e muito divertida: a Tia Natália. Entrei, vestido com um casaquinho castanho com quadradinhos claros. O momento ficou registado numa das centenas de fotografias que a minha madrinha foi tirando ao longo da sua vida, numa velha máquina de fole, que fechava e ficava reduzida a 1 cm de espessura.

 

Mas o herói desta história não sou eu, mas sim o magnífico avião que me esperava. Para mim, um avião era um pássaro metálico, imponente de olhar sereno. Os olhos eram as duas janelas, por onde os pilotos espreitavam.

 

Por baixo das suas imponentes asas de 29 metros de envergadura, havia duas rodas de tamanho respeitável. O avião, quando parado no solo, ficava inclinado, com o focinho apontado ao céu e com uma rodinha minúscula sob a cauda. Lá dentro, eram as casas e a paisagem que pareciam inclinadas e não nós que estávamos lá dentro.

 

Tratava-se de um modelo construído nos EUA em meados dos anos 30. Um acidente fatal com um avião com a estrutura em madeira, levou as autoridades a decretar que todos os aviões deviam ter estrutura metálica. A Douglas Aircraft Company aceitou o desafio de construir um avião, sólido, robusto e que podia transportar cerca de 20 passageiros com segurança. O que eu não sabia é que o avião onde eu ia voar pela primeira vez na vida tinha sido pioneiro num sem número de tecnologias que iriam ficar para sempre na engenharia das aeronaves. Foi o 3º modelo que foi aprovado para ser produzido em série, daí chamar-se DC-3. Durante a 2ª guerra mundial foram produzidos milhares destes aviões, que serviam para transportar tropas e material militar. Os 30 aviões que a Força Aérea Portuguesa comprou andaram, provavelmente na 2º Guerra Mundial. A SATA, a companhia aérea açoriana terá recebido um ou mais desses aviões. Se soubesse, talvez eu, a caminho do casamento do meu irmão, sentisse ainda a presença dos soldados sentados dentro do avião, temendo não regressar da viagem sobre o Canal da Mancha.

 

Foram construídos de forma a serem altamente resistentes, talvez jogando pelo seguro, já que à época não se conheceriam os verdadeiros limites de resistência mecânica dos materiais. Pelo sim, pelo não, antes de mais do que de menos.

 

Em Inglaterra ficaram conhecidos como “Dakotas” e foi assim que eu os conheci nos Açores. O meu irmão mais velho casou-se na Ilha Terceira, por que foi lá que cumpriu o Serviço Militar Obrigatório, na Base Aérea das Lajes. E lá conheceu a minha cunhada, por quem se apaixonou. Parece que o meu irmão aprendeu a ser mecânico de aviões, nos 5 anos que esteve na tropa. O Dakota seria um avião simpático que ele, se calhar, olhava com admiração.

 

Durante o Bloqueio de Berlim em 1948/49, os Dakotas transportaram milhares de toneladas na ponte aérea que se estabeleceu entre a cidade sitiada e a Grã-Bretanha.

 

Depois dos Dakotas, vieram para as ilhas dos Açores um novo avião, moderno, de quase 50 passageiros: o AVRO de fabrico inglês. Muitas vezes encontravam-se lado a lado, os dois aviões amigos: o velho e imponente Dakota e o jovem AVRO. Cada um tinha um som diferente nos seus motores. Anos mais tarde, um novo aeroporto surgiu, a 3 km da minha casa, nos arredores de Ponta Delgada. Sentado no meu quarto, quando o vento estava a favor, ouvia o som dos aviões que aterravam, mas sobretudo, distinguia o ruido dos motores, quando estes faziam das tripas coração, acelerando ao máximo para levantarem depois agilmente, como se de uma bailarina em “pas de deux” se tratasse. E eu, orgulhoso da minha sabedoria aeronáutica, conseguia distinguir e dizia para mim: “É um Dakota...”

 

Contava-se que, durante a 2ª Guerra Mundial, havia aviões que regressavam da travessia do Canal da Mancha, com um buraco na asa e só com um motor a funcionar e, mesmo assim, mantinham-se a voar como se nada fosse. Dizem os velhos pilotos, que a as asas oscilavam verticalmente de tão longas, como se o avião quisesse bater as asas para voar mais depressa. Não precisava. Conseguia voar a quase 300 km/hora e durante mais de 2 500 km se fosse preciso. 

 

Também dizem que o avião era tão equilibrado que parecia antecipar os erros do piloto, acabando o próprio avião por os corrigir.

 

Estes aviões entraram ao serviço da SATA nos anos 60, tendo esta companhia comprado dois aparelhos. Depois de muitos anos a voar entre as ilhas, um deles pelo menos foi vendido para as Honduras e depois para a Venezuela. Talvez o avião em que voei (ou o outro...) em 2007 ainda voava regularmente entre Caracas e Los Roques. Sabe-se que hoje ainda estará em condições de voar.

 

Mas a história mais fascinante de um DC-3 aconteceu no verão de 1957 em pleno Estado do Missuri. Um avião da Força Aérea americana viu o seu combustível esgotar-se. Todos os tripulantes saltaram de paraquedas, convencidos que o aparelho se iria despenhar. Surpreendentemente, ou não, o avião esgotou todo o combustível, e aos poucos, metro a metro, foi perdendo altitude, com os motores desligados, e suavemente pousou num campo de milho. Foi na verdade um avião que aterrou sozinho. É caso para dizer: piloto automático para quê? Ainda se pode avariar...

© Eduardo Rui Alves

bottom of page