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Uma história de vida (#194)

31.out.2020
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A partir daí, individual ou coletivamente, ganhamos a capacidade de antecipação. Ora é esta antecipação, materializada, por exemplo, nas previsões dos epidemiologistas, que pode permitir as adaptações e os ajustamentos necessários.

Todos temos uma história para partilhar: a nossa história pessoal. E toda a história pessoal de qualquer ser humano merece ser partilhada, não por cada um de nós ser uma variante caseira dos heróis homéricos, mas porque cada história, de cada ser humano vale, como testemunho de um tempo e de um espaço, geográfico e comunitário.

Partilhar a nossa história pessoal é, portanto, partilhar este tempo nosso, esta centelha de vida que pode sempre inspirar e incendiar o imaginário de alguém, sobretudo, de outra geração.

Sendo assim, venho dar conta que nasci no início dos anos 60 do séc. XX, numa madrugada de Outono, em casa, pelas mãos de uma velha e experiente parteira. Fui o terceiro e último de três filhos. “O fundo do tacho”, como me chamaram muitas vezes ou o “já-não-estavas-para-vir.” A verdade é que acabei por vir, às 4 da manhã, e ainda cá estou sessenta anos depois, forte e rijo, a contemplar o mundo desde 1960.

 

Na casa onde vivi até aos 30 anos de idade, o dia começava, não com o nascer do sol, mas com a chegada dos dois jornais matutinos que entravam por debaixo da porta e traziam, em letras gordas, o pulsar do mundo, deste o casamento da princesa da Suécia à guerra do Biafra, terminando na tabela das marés ou no percurso das Bibliotecas Itinerantes da Gulbenkian. Eram informações soltas que chegavam, mas que davam conta que o Mundo existia.

Tive como brinquedos um magnífico triciclo, umas tantas peças de LEGO, uma caixa de ferramentas, com martelo e alicates, pregos e pedaços de madeira que me fizeram interagir com diversos materiais na construção de pequenas engenhocas.

Assisti deliciado a ver o meu pai desmontar as duas ventoinhas lá de casa, todos os anos em Junho, a limpar o pó acumulado durante o inverno, antecipando os calores de Agosto. Eu próprio me deliciei a desmontar muitos outros aparelhos que dificilmente conseguia voltar a montar, sobrando algumas peças e parafusos, razão pela qual as maquinetas deixavam de funcionar.

Ajudei os meus irmãos mais velhos a construir algumas engenhocas, como a transformação de um despertador a corda num fascinante dispositivo elétrico que acendia lâmpadas e ligava rádios, à hora certa, num esforço desesperado para acordar um dos meus irmãos com o sono mais pesado.

Era a descoberta do porquê das coisas, da forma como os materiais interagiam entre si. Eram as leis básicas da física ou da eletricidade. Era a razão lógica que estava por detrás dos fenómenos que observávamos.

Tudo isso com vista para um quintal com uma frondosa glicínia, muitos caracóis e lesmas e um galinheiro repleto de galinhas com ovos postos ao fim da manhã. Dei os primeiros passos no âmbito da Biologia acompanhando as galinhas ao ficarem “chocas”, quer dizer, pachorrentas e preguiçosas, passando os dias em cima dos ovos postos, até nascerem os pintos. O verdadeiro doutoramento em incubação de frangos fi-lo aos 7 anos de idade, com 2 chocadeiras que um dos meus irmãos trouxe lá para casa. Os pintos eram vendidos na loja do meu pai. Era com curiosidade infinita que observava o virar dos ovos, dia após dia, até às primeiras bicadas dos pintainhos tentando sair do ovo, milagre da vida a acontecer dentro de uma caixa de madeira. Depois os pintos secavam à luz de uma lâmpada elétrica, órfãos de mãe e filhos de galo incógnito.

O meu pai montou nos anos 50 uma importante loja que tudo parecia vender. Era a verdadeira “loja do chinês”, ainda no tempo em que a China ficava longe. Foi na Casa Tinoco, “a casa dos mil e um artigos” que lidei com dossiês e carimbos, desde os 7 ou 8 anos de idade, num verdadeiro estágio até ao final da minha adolescência.

Na linha das aventuras dos cinco e do Clube dos Sete, livros da autoria de Enid Blyton, fiz parte de um verdadeiro clube secreto, com mais três dos meus 7 primos, com quem passamos tardes memoráveis ao longo do verão. Com cada um dos meus primos e primas, sem exceção, aprendi qualquer coisa de fundamental para a minha vida.

Fui testemunha da mania das aparelhagens de alta fidelidade que surgiu nos anos 50. Um tio meu recebia peças eletrónicas encomendadas nos EUA. Juntava estas peças meticulosamente e fazia surgir amplificadores e caixas de altifalantes que emanavam sons de uma pureza cristalina a partir de discos de vinil e de um gira-disco, de uma prestigiada marca britânica. O meu pai fazia parte de um grupo de pequenos burgueses que partilhavam entre si discos de vinil, gravados pacientemente em quilómetros de fita magnética. Era o fascínio da gravação eletrónica. Daí a trabalhar na rádio seria um passo.

Foi através de uma agência de publicidade que transmitia pela estação de rádio do Clube Asas do Atlântico, na Ilha de Santa Maria. Fazer rádio, articular música e palavras são gestos de um fascínio inebriante. 

A marca indelével de uma professora que tive entre os 11 e os 12 anos, mais umas tantas prateleiras com livros sobre ciência numa biblioteca pública, levaram-me a escolher a Biologia e a Geologia como base de uma licenciatura na Universidade dos Açores. Ainda como aluno, lidei de perto, no laboratório, com o escaravelho japonês que infestava a Ilha Terceira, nos Açores. Como tal, descobri o que seria a luta biológica contra este inseto, recorrendo a fungos ou nemátodes.

Devidamente habilitado como professor de Matemática e de Ciências comecei a enfrentar turmas de gente com 10 anos de idade, esta fase da vida em que tudo é fascinante. Com a pedagogia numa mala de viagem, parti com outros sonhos da minha ilha e aterrei numa escola de Sintra.

Dava aulas com vista para a serra, enquanto aprendia, em Lisboa, os segredos da realização de vídeo. Intercalando com a carreira docente, realizei vários e pequenos documentários empresariais que, prolongaram o prazer que tive na adolescência de filmar e montar película em Super 8. 

Orgulho-me, sobretudo, de um documentário sobre o Património Cultural da Assembleia da República e outro sobre a importância da higiene dentária, produzido para a DGS. 

Os antidepressivos e a dedicação de um médico brilhante, foram preciosos para enfrentar os achaques dos quarenta anos de vida: o desgaste e o desencanto que todos os professores vão sentindo a meio da carreira. Mas foram estas maleitas que me levaram às portas da homeopatia onde encontrei boa solução para os meus problemas de saúde. Daí ao estudo aprofundado da Medicina Chinesa foi um passo. Mergulhei durante 5 longos anos num estudo intenso desta Medicina Milenar, das salas da Universidade de Medicina Chinesa, aos recantos lá de casa, ao longo de noites e de madrugadas de leitura e escrita de apontamentos.

Acompanhei as lutas pela regulamentação das Terapêuticas Não Convencionais desde 2010. De vários quadrantes da sociedade portuguesa vinha a saraivada de contestação a estas terapêuticas, acusadas de não terem uma “base científica”.  E foi esta contestação que me levou a voltar aos livros e tentar perceber, afinal, o que foi e o que é a Ciência. Passei por Chalmers, Kuhn, Popper e Morin. Sobretudo recordei o desabafo de Pierre Laplace, um matemático do séc. XIX, em resposta a Napoleão: “A ciência não só explica o que acontece, como consegue antever e predizer.”

Na verdade, em 2016, percebi que a defesa deste importante sector da Saúde passaria por mergulhar nas raízes daquilo que é o conhecimento científico e perceber o sentido e a cientificidade das Terapêuticas Não Convencionais.

A pandemia de Covid-19 surgiu e em Março de 2020 ficamos confinados, num estranho modo de vida que não fazia parte do nosso imaginário. Descobri, entretanto, que Newton e Shakespeare tinham passado pela mesma experiência e daí nasceram importantes obras: a Teoria da Gravidade e “Romeu e Julieta”. No meu confinamento, entretanto, só brotou um enorme cansaço de muitas horas ao computador a tentar chegar aos meus alunos.

O mais surpreendente para quem estudou Biologia foi descobrir que ninguém parecia entender verdadeiramente aspetos básicos da proliferação de um vetor infecioso, como é um vírus. Sobretudo os juristas e os economistas que dominam o mundo da política e da governação parecem achar que podem submeter a realidade biológica de uma pandemia aos ditames da tácita política.

Mesmo na Europa, países como o Reino Unido ou a França cartesiana, começaram, distraídos com a sua sobranceria, por achar que os europeus eram gente limpinha e que estava longe das epidemias asiáticas. 

Nos EUA e no Brasil foram evidentes os fenómenos de perceção profundamente distorcida do que se estaria a passar à sua volta.

Perante uma pandemia desta dimensão, o desafio, em primeiro lugar, é a plena perceção quotidiana, por parte de cada cidadão, dos factos que vão ocorrendo. Mas simultaneamente é fundamental que cada habitante do planeta Terra tenha alguma compreensão dos mecanismos que estão por detrás dos fenómenos que à nossa volta ocorrem, sejam de natureza física, ambiental ou social.

Para que isso aconteça é preciso estar atentos à informação que nos chega, qual jornal que nos entra todos os dias por debaixo da porta. É preciso processar esta informação, como quem desmonta um equipamento eletromecânico com porcas e parafusos, recorrendo a uma caixa de ferramentas mentais e depois organizar mentalmente estes dados, em pastas e dossiês virtuais. 

Todo este processo é feito em boa parte, por qualquer um de nós, de forma inconsciente ou informalmente. As nossas atividades profissionais podem exigir uma abordagem mais formal ou sistemática, mas esse processo é fundamental e é a essência do nosso viver enquanto seres humanos.

Para este processo decorrer, é imprescindível uma boa preparação dada por esta instituição milenar chamada escola, mas também é necessário que toda a sociedade disponibilize mecanismos e dispositivos que permitem um entendimento dos mecanismos que estão na base dos mais diversos fenómenos que ocorrem à nossa volta. Isso aplica-se à pandemia de Covid-19 em 2020, mas generaliza-se a muitas outras dimensões da nossa vivência de seres humanos.

E o que fazer com esta perceção dos factos e dos mecanismos? Aí Pierre Laplace, recorda-nos que a ciência, dá-nos a capacidade de antecipar. E o que fazemos nós com esta capacidade de antecipação?

A resposta é fácil: adaptamo-nos. Em vez do Homo sapiens temos que construir o Homo anticipating, ou seja, o ser humano capaz de antecipar e com esta antecipação preparar o seu ajustamento no sentido de garantir os aspetos básico da nossa vida.

Nas últimas duas décadas assistimos à afirmação da China como grande potência económica e tecnológica. Porquê? Como é possível que um país considerado pobre e subdesenvolvido ao longo de boa parte do séc. XX, esteja a despontar, arriscando-se a ultrapassar potências como os EUA?

Provavelmente isso acontece porque a China tem e sempre teve uma elite culta, muito atenta ao seu passado histórico e cultural e com uma extraordinária capacidade de... antecipação e de adaptação.

A pandemia de Covid-19 que se abateu sobre a Humanidade em 2020 mostra-nos de forma dramática a importância deste processo ter lugar, pelo menos, na maioria das mentes dos seres humanos. A partir daí, individual ou coletivamente, ganhamos a capacidade de antecipação. Ora é esta antecipação, materializada, por exemplo, nas previsões dos epidemiologistas, que pode permitir as adaptações e os ajustamentos necessários.

Se isso é válido para a gestão da pandemia, é tanto ou mais certo para uma boa parte de tudo o que se passa na nossa vivência quotidiana.

© Eduardo Rui Alves 

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