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Um sexagenário inteligente (# 193)

29.set.2020
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Portanto, pela manhã, há que correr as cortinas, levantar os estores, abrir as janelas e olhar o céu. Se a soneira pela manhã não der para grandes reflexões, ao menos veja-se se vai chover e vista-se uma roupinha adequada para enfrentar o dia e a vida.

É verdade: fiz 60 anos e sou um sexagenário. Simpaticamente dizem-me que estou ótimo, de boa saúde e com ar jovem. Sei que não tenho um ar caquético, mas também não estou interessado em ser jovem, forte e belo para toda a vida. Agradeço a simpatia, mas, na verdade, não tenho destas pretensões. Alguém me perguntou como é ter 60 anos e outras pessoas desafiaram-me para falar sobre o assunto, como um bom cinéfilo que apresenta um filme que se vai ver. Não dá para falar de improviso, pois o assunto é sério e merece uma reflexão aprofundada.

Talvez devido ao posicionamento dos planetas na altura do meu nascimento, dizem os astrólogos, gosto de estar virado para o futuro, detesto estar sempre a pensar no passado e irrita-me quando alguém diz que antigamente é que era bom. Parafraseando um conhecido humorista, antigamente a minha situação não era muito boa. Apesar de ter cama e roupa lavada, há 60 anos eu estava desempregado e fazia xixi na fralda. Logo, o meu “antigamente” não é uma grande referência de vida.

Outro dia aconteceu-me um percalço que me fez pensar em duas ou três coisas. Aconteceu que me levantei mais tarde do que planeara, preparei-me para sair, comi à pressa e nem levantei os estores da janela e saí para a rua de sandálias, calções e t-shirt. Quando pus os pés na rua, estava a chover e fazia frio. Como estava atrasado fui mesmo assim e apanhei uma molha e um resfriado de fazer inveja à COVID.

Nada como uma molha e um resfriado para nos fazer pensar na vida. Veio-me à memória aquelas entrevistas de fim-de-semana, feitas à pressa com meia dúzia de perguntas rápidas colocadas a figuras públicas. Uma das perguntas obrigatórias é sempre “quais as figuras marcantes da sua vida”. Perante uma pergunta destas, fica bem referir nomes como Churchill, Leonardo DaVinci, Barack Obama ou D. Afonso Henriques. 

Se eu fosse famoso, não hesitava em responder que as grandes figuras de referência na minha vida, não são personagens históricas.

Diria antes que as grandes inspirações da minha vida vêm acima de tudo de três entidades: a Eschericia coli, o Chico e o avião.

A Eschericia coli é uma bactéria que vive nos nossos intestinos com 2 mícron de comprimento o que significa que num milímetro conseguimos colocar 500 bactérias em fila indiana. Tecnicamente esta bactéria vive na merda e no entanto faz a sua vidinha, absorvendo de tudo o que há à sua volta, nomeadamente os nutrientes que necessita para fazer construir o seu próprio corpo, crescendo calma e serenamente, no quentinho das nossas futuras fezes. Em boas condições, a cada 20 minutos, num gesto de profunda humildade, a Coli, com é conhecida entre os amigos, divide-se em duas, num gesto que tem o bonito nome de cissiparidade. Onde havia uma bactéria, passam a existir duas, ao ponto de se poder formar, passadas algumas horas, uma agradável colónia, onde se imagina que as Coli se acariciam mutuamente enquanto vão crescendo. Para além de humildes são generosas e produzem boas dose de vitamina K, muito útil a qualquer animal que as tenha dentro dele. Como têm um código genético relativamente simples, os coreanos conseguiram convencer estas bactérias a produzir gasolina, alterando o seu ADN, numa curiosa manobra de biotecnologia. Que melhor referência se pode ter para a vida?

Depois há o Chico. Tratava-se de um macaco rhesus que vivia numa gaiola no Jardim António Borges na zona norte da cidade onde nasci. Com a sua cara negra, olhos pequenos, mas perspicazes, pêlo cinzento, visitar o Chico era a cereja no topo do bolo para quem visitava o misterioso Jardim António Borges. Misterioso, porque tinha caminhos sinuosos, grutas em pedra, uma cisterna que ameaçava com o eco dos espaços vazios, para além de uma vegetação luxuriante trazida de todo o mundo pelos aristocratas micaelenses do séc. XIX.

Aliás, conheci 3 ou 4 macacos rhesus, trazidos das colónias, ou melhor, das províncias ultramarinas e que eram animais de estimação de algumas pessoas da cidade. Estranhamente, todos se chamavam Chico, para grande ofensa de quem tinha Francisco como nome de batismo.

O Chico do Jardim António Borges alternava uma postura de olhar distante de quem contemplando o infinito e reflete sobre os segredos da essência da vida, com uma atenção profunda e minuciosa a tudo o que o rodeava, absorvendo cada gesto dos basbaques que, como eu, seguiam cada um dos seus gestos. Descascava com os seus pequenos dedos ágeis o amendoim que lhe vinha parar às mãos ou desenrolava, ansioso, o papel de rebuçado, descobrindo um pitéu colorido e adocicado. Dizia-se que por vezes, ao desenrolar o papel de um rebuçado, descobria que lá dentro tinham colocado uma pedra. Enraivecido, atirava certeiramente a pedra ao engraçadinho que o pretendera enganar. Às tantas arranjaram uma companheira ao Chico que todos chamavam de Chica. Consta que foi aqui que surgiu a velha anedota: seria a relação entre o Chico e a Chica de amor ou de interesse? Devia ser amor porque, aparentemente não pareciam muito interessados um no outro. Se assim foi, o amor deu frutos e acabou por nascer um macaquinho que, obviamente, foi batizado de Chiquinho. Quando não havia amendoins ou rebuçados, era enternecedor ver os três, sentados, a catarem-se uns aos outros e a mordiscarem as alegadas pulgas, como se, de um bom petisco se tratasse.

Portanto, esta duas figuras marcaram a minha forma de estar na vida e vale a pena lembrar-me disso, agora que chego ao clube dos sexagenários. 

Em primeiro lugar há-que estar extremamente atento a tudo o que nos rodeia, tal como o Chico fazia. Cada gesto, cada acontecimento, cada informação é preciosa para não perdermos o Norte.

Em segundo lugar é preciso absorver aquilo que nos rodeia, sejam os nutrientes adequados, seja as pequenas e grandes informações ou os mais diversos conhecimentos, sabendo sempre rejeitar as pedras que vêm disfarçadas de rebuçados.

Em terceiro lugar, há que processar e articular tudo isso, nutrientes e conhecimentos no sentido de os integrar em nós próprios, fazendo o nosso corpo gerir a sua vidinha, mas também garantir a que a nossa mente e as nossas emoções se vão equilibrando.

Mas há uma surpreendente lição que a Coli nos deixa. Vivendo ela na merda e tirando partido do que a rodeia, percebemos duas coisas: mesmo no meio daquilo que alguém rejeitou, é possível alguma coisa aproveitar. Segundo, aquilo que possamos considerar “a merda” não é mais do que uma fase transitória, passagem para uma outra fase de reaproveitamento das fezes, que vão permitir a fertilização dos campos e o desenvolvimento de plantas que trarão alimento, sombra e algum oxigénio. Até as moscas acham que os dejetos são o locais ideal para lá colocar os seus filhotes.

Depois há a ilusão de deixarmos um legado. Gosto particularmente da imagens das bactérias perderem, aparentemente, a sua identidade dando origem a outro futuro, através da duplicação do seu ADN, qual legado que se deixa a quem vem a seguir, nas novas gerações. 

Ficou-me na memória a imagem das bactérias crescendo a bom ritmo, esfregando-se em eventuais carícias com as companheiras de colónia, qual gesto social, de grande importância para a nossa sanidade mental e emocional. É o que fazem os macacos quando se catam, pois mais do que um gesto de higiene corporal, é antes um momento de convívio e de estabelecimento de laços entre elementos de uma comunidade.

Mas a grande lição que o Chico me deixou, é que de tempos a tempos fugia da gaiola. Quando os jardineiros estavam desesperados, o Chico, com o desplante que é habitual nestas criaturas, voltava á gaiola como se nunca tivesse de lá saído. Há, portanto, que saber sair das gaiolas em que nascemos, mesmo que muita gente acabe sempre por voltar, não por aceitarem a clausura, mas antes como um gesto de plena liberdade.

Atenção ao que nos rodeia, absorver o que nos parece útil e saber integrar em nós o que há à nossa volta, é um primeiro princípio a manter por qualquer sexagenário inteligente.

Saber interagir com os outros, seja num esfreganço típico de bactérias, seja a catar-nos em pequenos e grandes convívios, reequilibrando as nossas emoções e enriquecendo as nossas vivências, será um outro grande princípio.

Mas é o avião que nos pode levar até uma das mais profundas descobertas.

Para muitos, o avião representa o eterno sonho de voar. Nada mais enganador.

Tudo terá começado com um grego chamado Ícaro, que, quando ninguém sabia o que era o alumínio, decidiu construir um par de asas em cera e com muitas penas. Como era ambicioso, quis subir cada vez mais alto, aproximando-se excessivamente do Sol. Resultado: as asas derreteram-se e Ícaro estatelou-se no chão, tornando-se na primeira vítima de um acidente da aviação civil. Veio a seguir a barcarola de Bartolomeu de Gusmão, o balão que tanto inspirou Júlio Verne, o dirigível que se incendiou em Paris e por fim os aviões de pano e madeira que gradualmente foram sendo construídos em alumínio, titânio e fibra de carbono.

O avião é um exemplo típico do desejo constante de modernidade e de inovação, num caminho exponencial para o voar cada vez mais alto, a maior velocidade, com cada vez mais passageiros. Com o Concorde atingimos a velocidade de 2000 km/hora, quase o dobro da velocidade do som. É caso para dizer que quando ouvimos o Concorde ele na verdade já está longe.

Tratava-se de um avião que voava mais alto, 18.000 metros, mais depressa, mas gastava muito mais combustível e cada viagem era das mais caras. E isso interessa verdadeiramente?

Com o acidente em 25 de julho de 2000, começou-se a pensar se esta engenhoca era realmente segura.

Afinal voar de forma tão moderna e tecnologicamente tão avançada, para quê?

Com a consciência do aquecimento global perguntamos se faz sentido que uma máquina, como o Boing 787, gaste 4 toneladas de combustível por hora. Se é para atravessar o Atlântico, que remédio. Mas se é para ir de Paris a Berlim fará mais sentido ir de comboio.

Olhando para os sites que seguem os milhares de voos que acontecem no planeta a cada hora, percebemos que toda aquela gente não está dentro dos aviões para voar, mas antes para “ir de um lado ao outro”. Ou seja, a essência do passaroco mecânico não é dar asas para voar, mas permitir deslocarmo-nos, seja para fugir da gaiola, seja no exercício da nossa profissão ou para melhor observar o mundo que nos rodeia.

A pergunta que o sexagenário inteligente faz é “qual a essência da vida”. Ser jovem e belo para sempre? Comer e beber até cair? Sexo à fartazana?

A molha que apanhei serve de ponto de partida: o que é essencial no bicho-homem e a razão pela qual o Homo sapiens conseguiu safar-se em qualquer parte do planeta é a particularidade de, olhando à volta como o Chico, absorvendo tudo como uma bactéria, conseguir rapidamente antecipar o que lhe pode cair em cima. Portanto, pela manhã, há que correr as cortinas, levantar os estores, abrir as janelas e olhar o céu. Se a soneira pela manhã não der para grandes reflexões, ao menos veja-se se vai chover e vista-se uma roupinha adequada para enfrentar o dia e a vida.

Antecipar e adaptar-se são bons princípios a seguir por qualquer sexagenário inteligente.

E sempre que possível fugir da gaiola de preferência em boa companhia.

© Eduardo Rui Alves

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