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De Paris à Ilha do Corvo (#2)

02.08.1990

A saga dos aviões


O AVRO da SATA - a voar nos Açores de 1967 a 1990
Aeroporto da Horta - Açores

Circunstância rara no aeroporto da Horta: três aviões em movimento. Um Avro já estacionado na placa, e acabado de chegar, um ATP em posição para se dirigir à pista, aguardando apenas que o Boing 737 da TAP acabasse de aterrar. Enquanto o Boing se dirigia para a parte leste da pista, o ATP entrou nesta no sentido contrário e preparou-se para levantar em direção à Terceira.


A SATA, companhia aérea do arquipélago dos Açores, fundada em 1941. Os seus aviões entraram no imaginário de muitos açorianos.


Nos anos 60, do séc. XX, viajávamos de Ponta Delgada até ao aeroporto de Santana, onde aterravam os míticos DC-3 chamados Dakotas, aviões que serviram na 2ª guerra mundial, adquiridos em 1963.


Depois, em 1967, vieram os AVRO, aviões a turbo-hélice com um som de motor completamente diferente. Do quintal da minha casa, o vento trazia ao longo de mais de 5 km de distância o som, ora dos Dakotas ou dos AVROS, quando deslocavam do aeroporto de Ponta Delgada, lá para os lados da Relva.


Por fim, em 1989 chegaram os ATP. Mal sabíamos que seria a 21 de Dezembro deste ano de 1990 que se realizaria o ultimo voo commercial dos AVRO e que partiria exatamente deste Aeroporto da Horta até Ponta Delgada.


O Boing da TAP, entretanto, entrava na placa Sul de estacionamento. Apesar deste movimento pouco habitual, todas as operações necessárias se processaram com enorme eficiência. Parecia que todo o sentido de ordem sempre patente nos mais ínfimos comportamentos dos faialenses estava aqui também evidente.


Do pequeno avião de listas vermelho e verdes, saia gente de ar arejado. Depois de atravessaram um terço de oceano Atlântico, traziam uma lufada de civilidade, de referências, de boas novas. Era através destes aviões que quase diariamente chegava oxigénio para cada inspiração desta ilha, de respiração intensa. Uma ponte que liga esta ilha à outra margem, ao retângulo ibérico.


Por fim chegou a nossa vez de embarcar. O Avro aguardava-nos para nos levar até às Flores. Soprava vento fresco de sul. Sabia que algures havia uma depressão. No entanto não seria suficientemente grave para nos impedir de atingir as Flores. Aqui a meteorologia tem uma importância muito grande. Como se fossemos pescadores e dependêssemos das condições do tempo para a nossa tranquilidade e sustento.


No terraço da aerogare, ainda há pouco, o tema da conversa era os aviões. Um casal de emigrantes ouvia atentamente as explicações:


- Ontem o avião da TAP só aterrou à terceira tentativa - comentavam.


- Estes comandantes da TAP não conhecem bem os ventos. Não é como os comandantes da SATA.


Entretanto chegaria o ATP da SATA. Era vê-lo baloiçar no ar mais de uma vez até tocar com a roda da asa esquerda no chão, continuar a avançar, e por fim, assentar as restantes duas rodas definitivamente no asfalto.


- Aterrou muito para a frente. - dizia alguém.


- Sim - concordava outro - Comeu muita pista. Devia ter aterrado mais lá para trás.


É fácil ser-se perito em aeronáutica no terraço de uma aerogare.


Falava-se de aviões como quem fala de vacas que depois de muita pista comerem, abrem as pernas e vai de parirem passageiros, malas e encomendas. Aqui os pilotos eram rebaixados à categoria de incapazes ou incompetentes. Mas no momento seguinte acabavam por serem considerados como grandes homens e elevados à categoria de santos ou de deuses.


- Milagres nos Açores - dizia um professor meu - Só o Santo Cristo ou os pilotos da SATA.


Finalmente o avião levantou em direção às Flores. Não foi uma subida muito suave. O avião galgou as várias dezenas de metros como degraus que havia que transpor.


As nuvens apresentavam várias abertas entre si, deixando ver o mar salpicado de manchas brancas aqui e ali. O avião agora parecia parado. Só a passagem de uma ou outra nuvem fazia lembrar que nos deslocávamos a mais de 500 quilómetros por hora. A algazarra a bordo era enorme. Sobrepondo-se ao ruído dos motores, as vozes de três crianças faziam-se ouvir. Viajar de avião talvez fosse tão banal como ir ali abaixo à esquina. Se perguntarmos a uma criança da Graciosa se ela já viajou de avião, ela dirá decerto que não. Mas responderá afirmativamente se lhe perguntarmos se já "andou na Sata". Lá atrás duas vozes expressavam concordância sobre as vantagens da utilização dos computadores, com breves dissertações sobre as qualidades de algumas marcas conhecidas.


Mal se distinguindo por entre todas estas conversas, a voz da hospedeira, com um corretíssimo sotaque micaelense, referia-se às saídas de emergência do avião, algures à frente e atrás, perante a mais firme indiferença por parte dos passageiros.


Recordo-me a propósito, duma viagem que fiz de S. Miguel para a Terceira, em que tive por companheiros de viagem uma boa vintena de pintainhos que no compartimento de carga piavam intensamente, inconscientes de estarem a voar a altitudes nunca imaginadas por qualquer galinha ou galo. Deliciei-me a imaginar, ao longo desta viagem o que seria se a caixa dos referidos infantes “piantes”, se soltasse e os pobres pintos saltassem para o meio dos passageiros.


Recordo ainda outra viagem, esta de barco, no saudoso "Ponta Delgada", o pequeno paquete que ligava as várias ilhas dos Açores ao longo de uma semana. Ao subir ao tombadilho deparei não com uma caixa de pintos, mas imaginem, com uma simpática cabrinha castanha, que melancolicamente contemplava o mar azul estranhando quem sabe aquela estranha pastagem cor do céu.


© Eduardo Rui Alves

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