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Foto do escritorEduardo Rui Alves

O primitivismo europeu

Atualizado: 25 de mar. de 2023



Ou seja, há aqui, [...], um tremendo primitivismo europeu.

Vivemos ofuscados na Europa por uma ponderosa tecnologia e por um património milenar com as raízes assentes na cultura grega.


Os gregos foram herdeiros dos avanços ocorridos na Mesopotâmia no norte de África. A escrita cuneiforme dos sumérios e dos acádios em tábuas de argila, os hieróglifos em papiro eram dominados por uma elite de escribas que usavam centenas ou milhares de símbolos para traduzir registos, memórias, leis, mensagens ou mesmo pensamentos. Os fenícios simplificaram a escrita ao ponto de qualquer mercador, dispensar um escriba especializado. Mas foram os gregos que inventaram uma vintena de símbolos: o alfabeto grego. Qualquer ser humano poderia propor-se a escrever um texto, por exemplo, sobre a sua própria vida.


Já Hesíodo dedicou uma parte da sua obra a falar, não de deuses e semideuses, mas das suas desventuras e do seu quotidiano. Foi, nas palavras de Irene Vallejo, o primeiro europeu.

A pujança da sua arquitetura, a clarividência dos seus sistemas políticos ou a sagacidade das suas estratégias militares fizeram dos gregos um povo e uma civilização surpreendente.

De avanço em avanço, a Europa atravessa a Antiguidade, com a expansão do Império Romano, mergulha na Idade Média e ressurge pujante no Renascimento.


Os europeus construíram uma perceção apurada do mundo que os rodeava ao ponto de se poder se poder ter a visão do planeta como uma “primeira aldeia global” já em pleno séc. XVII.

Avança-se na descoberta dos segredos da Física e depois da Química. A biologia, no séc. XIX, desvenda os seus segredos. Há aí, há 150 anos, uma perceção já muito alargada das leis do universo. Mas esta perceção só foi possível, porque simultaneamente, os europeus aperfeiçoaram uma curiosa metodologia. Esta metodologia permitiu e continua a permitir uma profunda validação de todas as hipótese e teorias que as várias gerações vão congeminando. A esta metodologia chamamos ciência. Está na base de toda a tecnologia inventada, primeiro nos países europeus e depois a partir de certa altura nas Américas do Norte e até um pouco por todo o mundo.


E nós vivemos ofuscados por esta tecnologia. Ela foi a máquina a vapor, os carros e os aviões, os comboios e os transatlânticos. Ela é o remédio em comprimidos, o telemóvel e o computador. Compramos cá em casa um novo automóvel, de fabrico francês, cujo computador de bordo, me ajuda a regular a sua condução. O nosso carro diz-nos quando e como acelerar e apita perante obstáculos. Dizem que toma a iniciativa de travar se alguém se atravessar na estrada, coisa que, espero, fique por comprovar. E estamos fascinados.


No entanto, perante uma pandemia provocada por minúsculo vírus, a Europa revela-se completamente primitiva, sob o ponto de vista humano e político.


A visão individualista, já manifestada nas palavras de Hesíodo, materializou-se nos textos constitucionais que começaram a surgir desde o séc. XVIII. A constituição portuguesa em 1976 consagrava vários direitos. Educação para todos e plena liberdade: liberdade de expressão e direito à opinião individual.


Tal como em muitos outros países europeus, em Portugal havia opiniões várias acerca de tudo. Cada um tinha direito à sua opinião e isso devia sempre ser respeitado.


Mas um vírus propaga-se com base em leis e em princípios de natureza epidemiológica e não com base em princípios constitucionais, estes sim, à mercê da vontade humana.


A propagação do vírus faz-se independentemente da minha opinião ou da minha vontade.

Torna-se então fundamental eu perceber as leis com base nas quais o vírus se propaga. E aí surge o primeiro problema: a escola esqueceu-se de ensinar isso. Então assistimos a políticos e cidadão comuns a mergulharem num pântano de “não-perceção”. Ninguém parece entender meia dúzia de mecanismos biológicos básicos que estão na origem do funcionamento de uma pandemia provocada por um vírus. Ora esta “não-perceção” conduz muita gente às portas da morte, literalmente, independentemente, da “opinião” e da perceção de cada um. Esta não-perceção, motivada por um profundo desconhecimento, é o primeiro sinal do surpreendente primitivismo europeu, partilhado pela América do Norte e pela América do Sul, regiões que se consideram herdeiros da cultura europeia.


Numa perspetiva mais alargada, é surpreendente a postura da Europa, ao não entender que a proliferação de um vírus ocorre por todo o planeta, independentemente das fronteiras nacionais, e que esta proliferação está a contribuir para incentivar a ocorrência de múltiplas mutações.

Ou seja, há aqui, em contraste com a pujança tecnológica, um tremendo primitivismo europeu.

Podemos eleger, neste momento, final de 2021, três grandes desafios: a pandemia, as questões ambientais e a pobreza. Perante qualquer uma delas, parece haver uma angustiante indiferença por parte dos dirigentes europeus. Se um dirigente europeu disse o que disse dos países do sul da Europa, imagine-se o que pensará sobre o resto do mundo.


Dir-se-iam pessoas incultas, sem instrução. No entanto, Boris Johnson frequentou no Eton College e Balliol College de Oxford. Emmanuel Macron estudou filosofia na Université Paris Nanterre, concluiu um mestrado em políticas públicas no Institut d'Études Politiques de Paris, e depois se formou-se na École Nationale d'Administration. Entretanto, Angela Merkel especializou-se em química quântica na Universidade de Leipzig.


Todas estas instituições são consideradas escola de enorme prestígio.


Como se explica esta visão ainda primitiva, sob o ponto de vista político e humano?


Decerto, um mistério que interessaria descortinar.


© Eduardo Rui Alves


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